Consciência Negra

O beijo dos mortos    
Carmen levantava-se vagarosamente. Seu quarto era escuro e a claridade que ainda o iluminava provinha de um feixe de luz de um pequeno orifício nas velhas janelas do casebre. A idosa era uma senhora dos seus noventa e dois anos de idade, olhos brilhantes, verdes como folhas molhadas e profundos como a imensidão do infinito. Era de porte pequeno e seus delicados pés a sustentavam com o auxílio de uma muleta dourada, presente este que havia ganhado há muito por um jovem mercador que habitava as terras do extremo sul de salvador. A terra natal de Carmen. Caminhando até a janela o coração de Carmem palpitava. Dançava dentro da carne que lhe cercava num compasso rítmico. O mormaço do verão realmente não fazia bem a uma mulher como ela. Era questão de segundos para que sua pressão abaixasse e se elevasse no mesmo instante, contudo as batidas se tornaram estáveis e diminuíram.  A velhinha, patriarca finalmente havia chegado á abertura bifurcada, separada por um aço que a dividia ao meio. Agora sua visão se deslocava para o alpendre e logo em seguida para a rua. Mas antes que pudesse observar o movimento, lembrou-se que os ares do verão não lhe deixavam bem e lhe transportavam a um passado que preferia não reviver novamente. Cada estação carregava no ar nuances de gostos, sabores, lembranças e sentimentos. O outono trazia gosto de chocolate, lembranças nostálgicas dos tempos de criança, quando ainda despencava das árvores corria pelos campos abertos e se sentia livre. A primavera por sua vez lhe trazia o cheiro do angu a molho feito por sua mãe, uma célebre cozinheira dos antigos tempos que trabalhava a serviço da aristocracia. Já o inverno trazia-lhe gosto de sorvete, e fazia-lhe lembrar de seu pai que há muito tempo havia o perdido. E o venerado e ao mesmo tempo odiado verão que lhe trazia aquelas lembranças trágicas. Por um momento a nostálgica idosa pensou em fechar as janelas e voltar para a escuridão, mas repentinamente desviou sua atenção para crianças brincando na rua, mais precisamente em um parque que havia há alguns metros de sua moradia. Eram crianças negras. Carmen refletia no vazio de sua mente o tanto que eles haviam evoluído e por tudo que eles passaram até o seu estágio atual, as barreiras e lutas que enfrentaram acorrentados pela adstringência e ignorância terrenos, mas agora livres detinham seus direitos mesmo que ainda não os tivesse por completo, mas era claro para ela que eles haviam vencido não o preconceito, mas a injustiça. Ela observava pessoas de pele queimada passeando pelas ruas vestidas elegantemente com trajes dantescos trabalhando em altos cargos da sociedade e percebia que agora eles eram realmente cidadãos batalhando por seus direitos. Em questões de segundo os ares nefastos do verão atingiram a cartilagem elástica do nariz da senhora e penetraram em seu corpo, se transportaram até seu cérebro que enviou estímulos a parte responsável pelas lembranças e assim foi acionado o passado, como se fosse convocado pela natureza. De volta a Carmem seus olhos cresceram e suas pupilas se dilataram. Seu passado esquecido estava prestes a lhe atormentar, não havia como cessar as recordações agora. Veio então a sua mente a figura de um homem forte, imponente, guerreiro, jovem e audaz. Segurava em suas mãos uma espécie de pingente, o mesmo que estava no pescoço da idosa. Nesse instante ela se lembrou de tudo o que havia passado. Que havia se apaixonado por ele, um escravo, um negro e de como aquele amor era forte e lhe impulsionava á vida. Mas lembrou-se das opressões que lhe atingiram. A maldade de sua família que nunca deixou os dois ser felizes. Certa vez fugiram para uma aldeia quilombola para nunca mais voltar,  mas do mesmo modo que o viril escravo sofrera resistência por parte da aristocracia branca, Carmem sofrera pela burguesia negra.Sem ter para onde se refugiar logo um procurador enviado por seu pai os encontrou e assassinou o mulato , mas antes o torturou .Antes que pudesse morrer Varnil deixou um pingente a mulher para que pudesse recordar-se dele e mais que isso foi um mártir para a pobre menina da pele alva apaixonada por um escravo.Dali para frente a vida de Carmen seria um inferno noite e dia.Seu amor havia morrido,o maior amor de sua vida havia fenecido junto a terra, e assim deveria ser para ela, enterrar esse amor para que um dia os dois pudessem se encontrar na imensidão da terra ou quem sabe no magma fervente da terra.Como num choque Carmen despertou de suas lembranças nostálgicas.Voltou a vida.Realmente os ares do verão não lhe fizeram bem, a velhota deu meia volta fechou as janelas e retornou a escuridão no mesmo estado em que seu espírito se encontrava.Deitou-se lentamente, beijou seu pingente. Não tinha filhos, não havia família, não detinha amigos e muito menos felicidade. Qual o sentido da vida então? Nenhum. Ela pensou. Abriu uma gaveta ao lado da cama, pegou alguns comprimidos e os bebeu com uma mistura de água com açúcar que estava sob a mesinha decorativa. Lentamente suas pálpebras se fechavam e seu coração batia cada vez mais lento até que cessou. Agora Carmem voltou á luz. Ela pode ser feliz, reencontrando seu verdadeiro amor. Desferindo-lhe o beijo dos mortos.

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